Por Julci Rocha *

A Política Nacional de Educação Digital (PL 4513/2020), da deputada Federal Angela Amin (PP) foi apresentada na Câmara dos Deputados em 09/09/2020. um momento em que a pandemia da COVID-19 ainda impossibilitava a retomada das aulas presenciais nas escolas e a discussão de tecnologias digitais estava em alta.  Em sua ficha de tramitação na Câmara, são descritas as alterações em atuais legislações que a lei propõe, além de demandar outras regulamentações, se aprovada. As leis afetadas são:

  • 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), prevendo a educação digital como dever do Estado.
  • 9.448, de 14 de março de 1997 (Transforma o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais – INEP em Autarquia Federal), passando a ser responsável pelas metas e indicadores
  • 10.260, de 12 de julho de 2001 (Dispõe sobre o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior – FIES), prevendo priorização para programas de duração em técnicas e linguagens computacionais previstos na legislação relativa à Política Nacional de Educação Digital.
  • 10.753, de 30 de outubro de 2003 (Institui a Política Nacional do Livro), passando a envolver formatos digitais.

O referido PL tramitou em caráter de urgência. Depois de discussões propostas na Câmara dos deputados, o projeto foi aprovado em 04/08/2022 e seguiu no Senado Federal, com alguns ajustes (texto substitutivo à versão original) realizados pelo deputado Professor Israel Batista (PSB-DF). Nesse momento, o PL está em consulta pública e seu relator, o senador Jean Paul Prates (PT/RN) demandou uma audiência pública, ocorrida em 23/11/2022. Essa audiência será tema da nossa próxima publicação. Antes, precisamos entender bem o que esse projeto de lei propõe. Vamos lá?

O que na prática pretende o PL 4513/2020?

Fonte: Agência Câmara

Como o nome diz, o PL 4513/2020 se propõe a estabelecer uma política de educação digital para todo o país, envolvendo um conjunto de objetivos e dimensões que têm como eixo transversal o desenvolvimento de competências digitais. Um ponto importante para entender a complexidade dessa política é exatamente isso: nela, há propostas de ações em diferentes dimensões da sociedade, como escolas e universidades, mercado de trabalho e geração de emprego e pesquisa e inovação.

No texto, fica claro que essa política deve se articular “com outros programas e políticas à inovação e à tecnologia na educação que tenham apoio técnico ou financeiro do governo federal”, devendo se submeter às condições orçamentárias e limites impostos em lei e envolvendo cada órgão governamental envolvido com suas respectivas competências.

Conforme consta em sua justificativa, o PL 4513/2020 foi inspirado na matriz de referência europeia para competências digital, conhecida como DigiComp (The Digital Competence Framework for Citizens – 2013), no DigiCompEdu , matriz que se ocupa das competências digitais dos educadores (The European Framework for the Digital Competence of Educators. 2017) e no documento Portugal INCoDe.2030: Iniciativa Nacional Competências Digitais e.2030”, da República Portuguesa, de 2017. A iniciativa de Portugal está em andamento e já foram definidas metas e indicadores, que podem ser acompanhadas pelo site do programa.

Os eixos que fazem parte da política são:

1. inclusão digital (população em geral): direito a igual acesso à toda população para “obter informações, comunicar-se, trabalhar e interagir com outras pessoas”.

Ações sugeridas no PL para esse eixo, de forma resumida

  • ações de sensibilização da população para o tema;
  • elaboração de ferramentas de autoavaliação;
  • treinamentos em competências digitais, midiáticas e informacionais (inclusive para grupos mais vulneráveis);
  • criação de repositórios;
  • processos de certificação;
  • universalização de infraestrutura de conectividade

2. educação digital escolar (educação básica): visa garantir a educação digital da população, “estimulando e reforçando o letramento digital e informacional, o ensino de computação, programação, robótica e outras competências digitais em todos os níveis de escolaridade, em consonância com diretrizes curriculares específicas, e como parte da aprendizagem, da cultura e da formação de valores. As dimensões da educação escolar digital são o pensamento computacional, mundo digital e cultura digital, as mesmas dimensões que estão contempladas no Parecer CNE/CEB 2/2022, em complemento à BNCC, que institui as normas para ensino de computação na educação básica. Vale ressaltar que o conceito de computação desse documento não é ensino de programação, mas de tecnologias digitais e seu universo cultural.

Outra dimensão que está presente na educação digital escolar envolve a tecnologia assistiva, que ” engloba produtos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivam promover a funcionalidade e a aprendizagem, relacionada à atividade e participação de pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade reduzida, com vistas à sua autonomia, independência, qualidade de vida, inclusão social e acesso à educação”.

Ações sugeridas no PL para esse eixo, de forma resumida

  • adequações no currículo da formação inicial ligadas à área pedagógica, à cidadania digital e à capacidade de uso de tecnologia;
  • incluir tecnologias como ferramentas e conteúdo programático na formação continuada de gestores e professores;
  • práticas de letramento midiático e informacional para os estudantes seguindo BNCC e demais diretrizes;
  • promoção de projetos e práticas de pensamento computacional, ética no ambiente digital, letramento midiático e cidadania na era digital;
  • promoção de ferramentas de autodiagnóstico de competências digitais dos educadores e estudantes;
  • divulgação e promoção das áreas de tecnologia e carreiras envolvendo STEM (Science, Technology, Engineering and Mathematics) entre os estudantes da educação básica, inclusive com atividades complementares;
  • uso de tecnologias para inclusão de estudantes com deficiência e com adoção de critérios de acessibilidade e interoperabilidade para garantir seu uso equitativo;
  • diagnóstico e monitoramento das condições de acesso nas escolas públicas;

3) capacitação e especialização digital (trabalhadores): voltada à empregabilidade da população ativa, com promovendo “a especialização em fundamentos, tecnologias e aplicações digitais”.

Ações sugeridas no PL para esse eixo, de forma resumida

  • identificação das competências digitais necessárias para a empregabilidade em articulação com o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) e com o mercado de trabalho;
  • antecipar as competências desejadas pelo mercado para estudantes do ensino superior, para adequar a relação oferta/ demanda de cursos de TIC em áreas emergentes;
  • requalificação e integração profissional de graduados e desempregados, com processos de certificação;
  • oferta de minicursos online em vídeos e em plataformas interativas; oferta, pela indústria, de cursos e certificações em nível intermediário em linguagens de programação (prazo curto, inferior a 3 meses);
  • promoção de rede nacional de cursos de educação profissional e superior em competências digitais;
  • promoção de formação básica de curto prazo, graduação e pós-graduação em competências digitais ligadas à indústria em colaboração com o setor;
  • formação dos professores para o tema;
  • implantação de rede de programas de ensino avançado, cursos de atualização e formação continuada de curta duração em competências digitais ao longo da vida profissional, bem como programas de mestrado e doutorado;
  • criação de laboratórios para ofertar essas formações;
  • promoção à criação de bootcamps (imersões de curta duração privilegiando a prática e criação de soluções; criação de repositório de boas práticas; incentivo a parcerias com setor privado para viabilizar ações;
  • formação de servidores públicos;

4) Pesquisa Científica em Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs): A dimensão da pesquisa envolve fomento aos pesquisadores em novas produções de conhecimento na área e “em redes e programas internacionais de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (P&DI)”, respeitando aos mecanismos de promoção e proteção da inovação descritos na Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004.

Ações sugeridas no PL para esse eixo, de forma resumida

  • implementação de programa nacional para o desenvolvimento de iniciativas de computação avançada, com incentivo a novas atividades de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) nas áreas de computação científica, ciências e tecnologias quânticas, inteligência artificial, mídia digital, com ênfase nestas 4 (quatro) áreas principais, sem prejuízo de outras que vierem a ser identificadas;
  • promoção de parcerias entre o Brasil e centros de ciência e tecnologia de grande relevância internacional;
  • promoção de atividades de qualificação avançada de recursos humanos nos vários níveis de competências digitais;
  • interação com países do atlântico para enfoque em cooperação de pesquisas que relacionem questões envolvendo clima, energia, atmosfera e oceanos na região, em especial a África portuguesa;
  • aquisição de competências que capacitem a “Ciência Aberta”, com com destaque para a criação de roteiro nacional e latino-americano de infraestruturas de pesquisa em informática científica e divulgação de conteúdos digitais;
  • compartilhamento de recursos digitais entre instituições;
  • incentivo ao armazenamento, à disseminação e à reutilização de conteúdos científicos digitais em língua portuguesa;
  • formação e requalificação de docentes em TIC e em tecnologias habilitadoras;
  • criação de repositório para hospedar informações sobre as demandas do setor público em todo o território que possam ser supridas por meio do desenvolvimento de soluções tecnológicas.

Como foi possível perceber, o PL 5413/2020 é bem amplo, específico com relação às ações que se propõe, mas não prevê algo bastante importante: fontes de financiamento. Durante o documento, é reiterado que as atuais fontes de financiamento já existentes para essas áreas serão utilizadas para sua execução, respeitados os limites orçamentários e o âmbito de competência dos órgãos governamentais envolvidos”, podendo prever também recursos da iniciativa privada.

Para que possa ser desenvolvida, ela depende também muitas coisas, algumas inclusive já foram mencionadas dentro das próprias ações sugeridas, mas se repetem a seguir:

  • desenvolvimento de infraestrutura tecnológica nas instituições de ensino .
  • desenvolvimento de planos de execução nas instituições de ensino “com promoção do desenvolvimento de competências digitais e métodos de ensino e aprendizagem inovadores, fundamentais para o desenvolvimento acadêmico”;
  • desenvolvimento de lideranças escolares (e sua qualificação para tal);
  • produção ou apoio à produção de recursos de aprendizagem digital, com caráter educativo ou com potencial para uso nas instituições públicas, de todos os níveis;
  • avaliação interna, avaliação externa para cada instituição educativa, com análises evolutivas da educação digital do país;
  • metas concretas e mensuráveis- de responsabilidade do INEP.
  • Necessidade de convênios, termos de compromisso, acordos de cooperação, termos de execução descentralizada, ajustes ou instrumentos congêneres com órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal, bem como entidades privadas.

No dia 23/11/2022, houve uma audiência audiência pública envolvendo especialistas que são relevantes para pensar quais são os avanços e retrocessos que a aprovação dessa lei, como está hoje, pode trazer para o contexto das tecnologias na educação.

Referências

Agência Câmara de Notícias. Câmara aprova Política Nacional de Educação Digital – Notícias – Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Publicado em: 04/08/2022

G1. Câmara aprova projeto que cria política nacional de educação digital | Política | G1 (globo.com) . Publicado em 04/08/2022. por Luiz Felipe Barbiéri e Marcela Mattos.

MEC. Conselho Nacional de Educação: Parecer CNE/CEB 2/2022.

República Portuguesa. Portugal INCoDe.2030: Iniciativa Nacional Competências Digitais e.2030. 2107 (Website)

Senado Federal. Projeto de Lei n° 4513, de 2020.

União Europeia. The Digital Competence Framework for Citizens (DigiComp). 2018.

União Europeia. The European Framework for the Digital Competence of Educators (DigiCompEdu). 2017

* Julci Rocha

Doutoranda em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC/SP e membro do grupo de pesquisa internacional Desenvolvimento de Competências Digitais em Educação (PUC/SP). Mestre em Educação: Currículo pela PUC/SP, pós-graduada em gestão educacional, design educacional e educação inovadora. Licenciada em Letras pela USP. Fundadora da Redesenho Edu, desenvolvendo materiais didáticos, formações e idealização/desenvolvimento de projetos para instituições de ensino, fundações do terceiro setor e empresas do ramo educacional  centrados em metodologias ativas e integração de tecnologias digitais. Contato: julci@redesenhoedu.com.br

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